Intervenção de Miguel Viegas na Assembleia Municipal de Ovar de 21 de Dezembro de 2009.
Índice:
» 1 - Carta desportiva
» 2 - Protocolo entre a ADRA e o Município de Ovar (processo de privatização das águas)

Miguel Viegas

Ponto 1: Carta Desportiva

Começo por precisar aqui um equívoco. O documento que estamos aqui a discutir pode ter a designação que a Câmara lhe quiser dar: carta, atlas ou outro, mas não é seguramente uma Carta Desportiva.

Este documento - importante, é um facto - não é mais do que um retrato do concelho no que toca a infra-estruturas. Aponta algumas carências e propõe algumas soluções. Não há nem prioridades, nem calendarizações, nem qualquer estudo económico ou financeiro. Não há, em suma, nenhuma ideia sobre políticas desportivas para o concelho.

 

Ora uma carta desportiva é muito mais do que uma súmula descritiva do que existe e de quais são as principais carências do concelho em matéria de infra-estruturas desportivas.

Uma carta desportiva deveria contar as grandes linhas de desenvolvimento de política desportiva para o concelho. O Desporto tem hoje um papel de enorme importância na nossa sociedade. O desenvolvimento das sociedades ocidentais, e o consequente bem-estar económico trouxe grandes alterações na forma de estar e de viver das populações. Mais terciarização, novas tecnologias, menos esforço físico no trabalho, maior urbanização, levam a que o homem de hoje seja confrontado com uma maior sedentarização, com cargas maiores de stress e menos contacto com a Natureza. Através das suas diversas funções sociais, a saber, a função formativa, a função recreativa, a função de reinserção social, a função recreativa e finalmente a função económica, o desporto interage com toda a sociedade nos seus muitos e variados domínios, desde a escola às empresas, passando pelos clubes, colectividades e associações. Neste contexto, as autarquias desempenham um papel fundamental porque, conhecendo as necessidades e interesses das populações, podem contribuir para o desenvolvimento das condições necessárias à prática desportiva, quer formal, quer informal. A definição de uma Política Desportiva Municipal que oriente e incentive a actividade desportiva da população em geral e dos diversos agentes desportivos em particular é uma das condições essenciais para que o desporto se afirme como um dos pilares do desenvolvimento municipal.

Sem dúvida que o primeiro passo para a elaboração de uma carta desportiva deve consistir na caracterização do parque desportivo do concelho, diagnosticando as principais carências e criando diferentes cenários de evolução. Neste sentido este atlas desportivo é sem dúvida um bom primeiro passo. Mas falta o resto. É necessário elaborar um quadro de prioridades, elaborar propostas de concretização dos objectivos elencados. Importa envolver a comunidade na discussão desta temática, fomentando o debate com vista à recolha de dados que permitam a criação de um verdadeiro instrumento de planeamento que permita o ajuste das necessidades à realidade sócio-económica do município, concretizando as orientações da política Desportiva Municipal.

Uma política Desportiva que deveria, em nossa opinião, basear-se nos três seguintes princípios:

  • Possuir uma perspectiva de desenvolvimento desportivo integrada que parta do conhecimento concreto e que procure fornecer resposta adequada a todos os grupos sociais, corrigindo assimetrias e desenvolvendo a sua acção numa perspectiva de democratização da prática desportiva para todos contemplando o desporto escolar, o desporto popular, o desporto federado, o desporto informal e finalmente o desporto de lazer.
  • Reconhecer o papel insubstituível dos clubes desportivos para a estruturação do desporto, devendo a Câmara basear o seu apoio sempre de acordo com projectos específicos.
  • Dar grande atenção à prática desportiva por todos os que não se encontrem integrados nas estruturas existentes (clubes, escolas, associações etc.), prestando particular atenção ao papel que o desporto deve desempenhar na integração social, na melhoria da qualidade de vida e na luta contra a exclusão dos desfavorecidos e carenciados (idosos, mulheres, deficientes e aos jovens em risco de marginalização).

 

Seria útil sabermos o que pensa a Câmara sobre estas questões. Pela nossa parte estamos inteiramente disponíveis para contribuir de forma positiva para esta reflexão, desde que a mesma conduza de facto à concretização de uma efectiva política desportiva que manifestamente não tem existido - na nossa opinião.

Quanto ao documento hoje em discussão, começo por valorizar o trabalho realizado em sede de Comissão Especializada que contribuiu por um lado para uma melhor compreensão do documento e, por outro, através da sugestão de um conjunto de achegas, também para o seu melhoramento. Como altas desportivo (e não como carta desportiva) parece-me um bom ponto de partida para o debate visando a tal política de desenvolvimento desportiva referida anteriormente. Não é naturalmente isento de críticas. Traduzindo talvez a falta de auscultação dos agentes desportivos do concelho, não refere a questão da falta de estruturas de apoio que condicionam o desenvolvimento de muitos clubes. Muitos carecem de sede ou até de balneários. Daí propor-se por exemplo a construção de uma pista de atletismo sem nenhuma estrutura de apoio. Pela nossa parte, e contrariamente à opinião dos autores deste atlas, continuaremos a reivindicar uma Casa Municipal do Desporto que comporte balneários, sala de apoio aos clubes, um ginásio e eventualmente um pequeno auditório ou sala de reuniões. Nesta casa poderia igualmente funcionar o Pelouro do Desporto.

Outro aspecto que merece aqui um reparo está no facto de se falar muito de infra-estruturas esquecendo o principal, ou seja o capital humano. É feita a resenha dos clubes mas sem qualquer indicação qualitativa ou quantitativa. Os dados até estão na Câmara, porque os clubes entregam anualmente os seus planos de actividade com as competições organizadas, números de atletas, desempenhos competitivos, etc. Como é possível tomar opções de fundo em matéria de equipamentos sem conhecer a importância da modalidade ou dos clubes; quais as principais competições realizadas no concelho; quantos praticantes envolvem, etc.

Finalmente, o documento passa ao lado das enormes potencialidades naturais existentes no concelho que deveriam abrir enormes perspectivas de desenvolvimento eventualmente até com repercussões económicas. Quem conhece o fenómeno desportivo sabe que o nosso país, pelo seu clima e pelas suas condições naturais, é sistematicamente cobiçado pelos países nórdicos cujo clima não permite a prática desportiva durante o Inverno. Vemos por isso centenas de equipas de diversas modalidades estagiarem o nosso país. Dou apenas dois exemplos: a canoagem e a orientação. Para ambas as modalidades temos condições absolutamente excepcionais, mas nada desta realidade aparece contemplada no documento. Assim como nenhuma referência é feita à nossa costa onde existem centenas de praticantes de surf. Todavia, fruto do trabalho da Comissão, esta lacuna foi reconhecida e ficou o compromisso por parte dos autores do documento de acrescentarem uma adenda visando estes aspectos.

Concluo dizendo, apesar das críticas, que se trata de um bom documento que deve naturalmente ser aprovado, e deixando uma proposta a esta Assembleia e à Câmara Municipal. Como primeiro passo, no quadro da discussão de um Plano de Desenvolvimento Desportivo ou de um Carta Desportiva, proponho, em nome da CDU, a criação de um Conselho Municipal do Desporto, à semelhança do que existe em muitos concelhos. Trata-se de um fórum que pretende reagrupar todas as forças implicadas neste fenómeno e que poderá contribuir decisivamente para uma melhoria das políticas desportivas deste concelho. Comprometo-me portanto desde já a fazer chegar a esta assembleia nos primeiros dias de 2010 uma proposta formal nesse sentido.

Disse.

 

Miguel Viegas

Ponto 2: Protocolo entre a ADRA e o Município de Ovar

A Água é hoje cada vez mais um bem escasso. Contrariamente à ideia segundo a qual vivemos num planeta repleto de água, a verdade é que apenas 0,5% de toda a água existente na terra é passível de ser tornada potável.

Por outro lado a procura de água aumenta com o crescimento demográfico. As necessidades em água duplicam de 20 em 20 anos segundo os últimos cálculos disponíveis.

Ao mesmo tempo que crescem as necessidades de água, a presença humana, ao interferir com o natural ciclo da água, faz diminuir drasticamente a quantidade de água disponível. Pelo efeito de estufa, da crescente urbanização, da destruição da floresta, da poluição ou da agricultura intensiva, o ciclo da água abrevia-se. Desta forma, a água, que após um processo de evaporação, se transforma em chuva, em vez de escorrer lentamente, percorrendo todos os interstícios da terra e realimentando as reservas superficiais e profundas do planeta, tende cada vez mais a precipitar-se directamente para o mar.

De acordo com estudos das Nações Unidas, é previsível que em 2050 perto de metade da população possa estar sob stress hídrico, isto é, numa situação em que a água disponível esteja abaixo do limiar mínimo de 1700 litros de água /ano (note-se que, de toda a água considerada necessária para salvaguardar a existência da espécie humana, 10% destina-se ao consumo directo, 25% se destina à indústria e os restantes 65% à agricultura).

Não é portanto por acaso que a água tende a tornar-se cada vez mais um recurso geoestratégico. Com efeito, a água está hoje em diversos pontos do planeta, no centro de conflitos entre países e regiões. Citemos apenas a título de exemplo a ocupação ilegítima de Israel dos Montes Golãs, território pertencente à Jordânia, onde existem grandes reservas de água e onde nasce o rio Jordão. Tenhamos igualmente em consideração o Curdistão, cobiçado pela Turquia, pelo Iraque e pelo Irão, onde se encontram as maiores reservas de água do Médio Oriente.

Por outro lado, este quadro de escassez, aliado à particularidade desta relação de total dependência que nos liga à água, abre uma oportunidade de lucro que alimentou nas últimas décadas o crescimento de gigantescas companhias multinacionais ligadas ao sector de abastecimento de água. Não obstante, um quinto da humanidade não tem hoje acesso a água potável.

Perante este quadro, várias soluções foram-se confrontando ao longo da história. Naturalmente que estas soluções reflectem a ideologia dominante, e orientam-se de acordo com os interesses das classes que dominam. Em 1977, na 1º Conferência Mundial da Água realizada sob os auspícios das Nações Unidas em Mar del Plata, na Argentina, a água é então considerada como um bem comum. A água, que cai do céus e alimenta o nosso planeta é de todos tal como o ar que respiramos ou o mar e os rios que nos rodeiam. Cabe portanto aos povos e aos seus governos a gestão deste recurso, garantindo a sua universalidade, impedindo a sua apropriação privada e garantido o seu acesso a todos sem quaisquer constrangimentos, seja estes de ordem social, política, económica ou outros. Mais tarde, em 1992, num mundo bem diferente, a Conferência Mundial da Água de Dublin decreta a água como um bem económico. Os governos abdicam da sua missão de guardião do bem público abandonando esta função à lógica mercantil, e confiando que o mercado concorrencial representa a melhor forma de gestão, e que dá mais garantia visando uma gestão eficiente da produção e distribuição de água.

Desta última noção nasce o primeiro equívoco. De que mercado estamos nós a falar. Como é sabido, o abastecimento de água e saneamento, à semelhança de outros sectores como sejam o gás, a electricidade ou a rede fixa de telefone, constitui um monopólio natural. Ou seja, não é economicamente viável termos dois operadores a concorrer ao mesmo tempo no mesmo sector. Tendo em conta esta realidade, e para ajudar a justificar perante a opinião pública a privatização dos monopólios públicos que asseguravam amplos serviços essenciais, criaram-se as entidades reguladoras cuja eficácia é hoje no mínimo duvidosa. Na prática o que observamos são concessões por períodos de 50 anos e mais, com lucro garantido como iremos ter oportunidade de ver. Nestas concessões, como é evidente, a força negocial de quem concessiona é nula após entrada em vigor do contrato que contempla quase sempre cláusulas ao abrigo das quais as tarifas ou preços são sistematicamente revistos em alta, sem que as Câmaras tenham quaisquer meios de poder contestar.

Não é pois de estranhar que o mercado mundial da água seja hoje dominado por cinco gigantescas empresas multinacionais que facturam milhões e espalham a sua presença e influência pelos quatro cantos do planeta:

  • Veolia
  • Suez
  • SAUR (Societé d´Aménagement Urbain et Rural)
  • Times Water
  • American Water.

Veolia e Suez, ambas cotadas entre as 100 maiores e mais influentes companhias do mundo empregam mais de 100 mil trabalhadores e servem mais de 100 milhões de clientes em mais de 120 países. Em 2008 apresentaram 1,5 mil milhões de euros de lucros.

Estas companhias foram criando as suas teias de influência e condicionam hoje grande parte das decisões dos principais organismos internacionais. É neste sentido que devemos interpretar a posição do Banco Mundial que obrigou o governo da Bolívia em 1996 a privatizar o sector de água no vale de Cochamba sob pena de cortar o financiamento. A concessão viria a ser atribuída à empresa Aguas del Tunari – que depois se mostrou ser uma subsidiária da multinacional Californiana, Bechtel. Apenas poucas semanas depois de assumir o controle da água, a empresa Bechtel golpeou as famílias locais com um aumento de 200% na taxa de água.

Outro exemplo: o Parlamento canadense adoptou uma emenda à Lei do Tratado de Águas Internacionais de 2000, que teoricamente proíbe a exportação de águas do lado canadense dos Grandes Lagos e das restantes “bacias hidrográficas regionais”. Mas, segundo especialistas, esta proibição provavelmente não resistirá aos processos levantados pela Organização Mundial do Comércio (OMC) que considera hoje a água semelhante a qualquer outro bem transacionável.

Não é também por acaso que a presidência do Forúm Mundial da Água, que reúne mais de 300 ONG's e contou, na sua última reunião trianual em Istambul, ainda este ano, com mais de 25000 participantes, está hoje entregue ao Sr. Loic Fauchon, que é simultaneamente director do quarto grupo Francês de distribuição de água (Companhie Eaux de Marseille, que é entretanto controlado pelo gigante Veolia, líder mundial, que possui 48% do capital). Não devemos portanto estranhar determinadas conclusões de organismos que, debaixo de uma capa de neutralidade, constituem autênticas caixas de ressonância dos interesses do grande capital.

 

Esta introdução pareceu-me necessária, porque ela ajuda a perceber os valores e princípios que estão na base dos principais textos que suportam as opções políticas do nosso governo socialista para o sector. Seja o PEAASAR, Plano Estratégico de Abastecimento de Água e de Saneamento de Águas Residuais, documento político por excelência onde estão contidas as principais linhas de orientação do governo para este sector, sejam as peças legislativas que lhe dão suporte - a Lei da Água (58/2005), a Lei 54/2005 que estabelece a titularidade dos recursos hídricos e o Decreto Lei nº 90/2009 que estabelece o regime de parceria entre os estado e as câmaras para constituição dos sistemas multimunicipais - em todos estes textos estão bem claros os propósitos visando a mercantilização da água baseando-se numa confiança ilimitada no mercado e na iniciativa privada para uma correcta e eficiente gestão da água. Citando o PEAASAR:

“É fundamental que o modelo de organização do sector:
...Obedeça às normas da concorrência...
...promova o investimento privado no sector e o desenvolvimento do tecido empresarial...;”

 

Resumindo o processo de constituição do sistema multimunicipal em questão, temos em primeiro lugar o contrato de parceria através do qual e com base no citado D.L. 90/2009, as Câmaras abdicam das suas competências em matéria de águas e saneamento a favor do Estado. O mesmo protocolo prevê a criação de uma entidade gestora, neste caso a ADRA, Águas da Região de Aveiro, com a seguinte constituição: as 10 Câmaras municipais totalizam 49% do capital social sendo os restantes 51% da empresa do Estado Águas de Portugal. Ou seja as Câmaras na prática deixam de ter qualquer voz e perdem todo o poder designadamente em matérias tão sensíveis como seja o tarifário ou a universalidade do serviço. Finalmente e seguindo igualmente o D.L. 90/2009, segue-se assinatura de um contrato de gestão entre as autarquias, o Estado e a Entidade Gestora (neste caso a AdRA).

Vejamos então as consequências desta via perigosa na qual nos estão a empurrar. Em primeiro lugar, registe-se que se trata de uma concessão por 50 anos, que ultrapassa largamente a nossa própria existência material, e que esta concessão é com lucro garantido. Nos critérios das tarifas, é dito claramente no contrato de gestão que as mesmas devem cobrir todos os encargos (ponto 1 da cláusula 13). Mas para que não subsistam dúvidas, são enumeradas numa série de alíneas quais estes encargos, sendo interessante verificar a alínea i) que refere que os capitais investidos deverão ser remuneradas a uma taxa efectiva, ou seja depois de imposto, de 3%. Ou seja, o cidadão comum, ao gerir as suas poupanças, sujeita-se à oscilação da Euribor que vale hoje menos de 1%. Mas neste caso não; aconteça o que acontecer, a rentabilidade dos capitais nunca será inferior a 3%! E se porventura as receitas não chegarem, prevê explicitamente através das figura dos desvios tarifários os aumentos necessários para cumprir com aquela remuneração. Por aqui se vê a completa hipocrisia daqueles que defendem a lei do mercado e da iniciativa privada como solução para todos os males. Aqui não há mercado nem gestão empresarial, existe é um monopólio, ainda por cima com lucro garantido.

Em segundo lugar, vejamos a questão da eficiência. De acordo com os dados disponíveis no site da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos, a média nacional para agregados que consumam 120 litros de água por ano é de €1,23 (água e saneamento). Em Ovar esta média é de €1.66. O que nos propõe a AdRA é uma tarifa de €2.83 com convergência obrigatória até 2014 contemplando ainda a sua revisão em alta à conta do citado desvio tarifário. Não se percebe então onde é que está a eficiência. Ou se ela existe, pelos vistos não serão os consumidores a beneficiarem dela. Curiosamente, o relatório com as projecções económicas e financeiras não diferencia o que é venda de água e o que é saneamento, o que é grave, e contraria todas as normas de transparência que deveriam reger o mercado. Ou então, o propósito é consciente e visa impedir que haja comparações mais finas. De facto e raciocinando objectivamente, não existe nenhuma vantagem para o concelho de Ovar entregar o seu sistema de distribuição de água que está completo, funciona e é sustentável, com preços seguramente mais baratos. Nem existe qualquer lógica de ligamento entre o saneamento e a água, antes pelo contrário.

Gráfico comparativo
 
MANAGEMENT TYPE     1994   1995   1996   1997   1998   1999
PUBLIC MUNICIPAL/RÉGIES  1,489   1,621   1,716   1,803   1,848   1,841
PRIVATE DELEGATED/PRIVATE  1,784   1,908   1,993   2,050   2,100   2,100
PPP PUBLIC -PRIVATE JOINT VENTURE  1,734   1,812   1,963   2,014   2,076   2,101
AVERAGE AVERAGE ALL MODES  1,689   1,799   1,910   1,974   2,015   2,049

Fonte: Water in Public Hands, David Hall, Universidade de Greenwich

Ao nível europeu, verifica-se que, com algumas excepções, predominam ainda os sistemas públicos. Usemos o exemplo francês onde domina a iniciativa privada (70% no mercado) mas onde coexiste igualmente um sistema público importante que permite comparações. Nos sistemas públicos, as tarifas são em média de €1.84 enquanto que nos privados ou nas PPP's as tarifas médias são de €2,10. (O estudo é de David Hall da Universidade de Greenwich). Não é por acaso que a cidade de Camper, na Bretanha, já manifestou a vontade de não renovar o contrato de concessão que a ligar à Veolia, pretendendo assim voltar a nacionalizar a água já a partir de 2011. Em matéria de eficiências estamos portanto conversados.

Vejamos agora a qualidade do serviço. Para garantir o funcionamento do sistema, a AdRA prevê um quadro de pessoal de 310 funcionários, para estabilizar em 2014 nos 225. Só em Ovar existem 64 trabalhadores para garantir o funcionamento e a manutenção dos 387 km de canalização, das 17 estações elevatórias, dos 3 postos de cloragem, da estação de tratamento e das 13 captações. Não estou a contar com a rede de saneamento. Um dos grande problemas de qualquer sistema de distribuição de água está nos desperdícios de água que atingem valores entre os 30 e os 40%. A AdRA fixa uma meta de 20% de perdas entre a água produzida e facturada. É obviamente impossível esta realização com aquele quadro de pessoal. Porque nesta matéria não há economias de escala. Tem se haver presença, proximidade e intervenção pronta para compor roturas, fiscalizar ligações clandestinas e assegurar todo o trabalho de manutenção. Compreende-se aqui claramente o propósito de recorrer a empresas externas para a realização destes serviços de acordo com a moda do “outsourcing”, muito em voga nas grandes empresas privatizadas depois de anos a despedir pessoal. E se a empresa for de um “amigo” ou familiar, ainda melhor. E se o custo for superior como quase sempre é o caso, também não há problemas que o desvio tarifário cobre tudo.

Vejamos finalmente a questão da privatização ou não do fornecimento de água e saneamento. Esta é uma palavra proibida nestes debates porque quem está no poder sabe que as populações não querem a privatização da água. Porque percebem o perigo de entregar a uma entidade privada em regime de monopólio um serviço absolutamente vital como seja a distribuição de água. Por isso, tenta-se iludir as pessoas alimentando a ideia de blindagem do contrato. Nada mais falso como iremos ter oportunidade de ver.

No contrato de parceria, prevê a constituição de uma empresa em que o capital é dividido entre as Câmara com 49% e a empresa estatal Águas de Portugal com 51%. Até aqui tudo normal, com 100% de capitais públicos. Mas esta garantia sofre a primeira machadada nos próprios estatutos da AdRA que dizem no seu artigo quinto que apenas 51% do seu capital deve ser mantido em mãos públicas. Está aqui portanto claramente admitida a privatização da sociedade Águas de Portugal, podendo gerar-se uma situação em que um agente privado detenha 49% do capital da AdRA sendo os restantes disseminados pelas Câmaras e pelo Estado Português que ficaria com uns residuais 2%. Cabe perguntar nestas circunstâncias quem mandaria na empresa. Refira-se também para que não subsistam dúvidas que a privatização da Águas de Portugal já começou com a venda da Aquapor.

Mas em matéria de privatização, não há como ler a própria legislação. Com efeito o D.L. 90/2009 que rege a parceria diz textualmente no seu artigo 6º, ponto 4, e passo a citar:

4 — Desde que autorizada pelo contrato de gestão e nas condições nele estabelecidas, a entidade gestora dos sistemas municipais de abastecimento de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos sólidos urbanos pode:

a) Subcontratar, mediante celebração de contratos de prestação de serviços, as actividades de operação, manutenção e conservação de infra -estruturas e equipamentos, atendimento e assistência aos utilizadores dos serviços;

b) Conceder a gestão ou execução de parte dos serviços de cuja gestão está incumbida.

 

Está assim contemplada a questão do “outsourcing” referida há pouco, mas também, de acordo com a alínea b), a concessão do próprio serviço de água e saneamento. Ou seja, em última análise poderíamos ter uma AdRA composta apenas por um escritório que se passaria a concessionar o serviço de abastecimento de água e saneamento e esta ou aquela empresa para este ou aquele concelho. Um completa privatização de facto encapotada de forma ardilosa por gente sem escrúpulos em enganar as populações. Tenhamos em consideração que 50 anos é de facto muito tempo e muita coisa pode acontecer. Por outro lado voltemos ao PEAASAR que diz textualmente:

  • No modelo agora proposto, o Estado admite a incorporação dos activos da "baixa" das Autarquias nas concessionárias dos sistemas multimunicipais, (...) tendo em vista a realização dos investimentos em falta.
  • (...) objecto de um contrato entre as partes envolvidas. As referidas bases legal e contratual deverão esclarecer as obrigações financeiras e de serviço público a cargo de cada uma das partes, bem como identificar as fontes de financiamento aplicáveis. Deverão ainda estar consagradas garantias de sustentabilidade à gestão dos sistemas multimunicipal e municipais integrados.
  • No que concerne à gestão das "baixas" assim integradas, considera-se adequado o recurso à figura da concessão de serviço público, ou affermage, mediante concurso público internacional.
  • Sempre que haja recurso à concessão, esta pode ser feita por um prazo razoável (10 a 15 anos) e renovada por períodos subsequentes, sempre por concurso, até que esteja feita a recuperação do investimento inicial.

PEASAAR II; 6.7.2 - Modelo Verticalizado, pág. 111-112

 

Feita esta análise a CDU reafirma a sua total oposição a este projecto por razões de princípio segundo os quais a água, como Bem Público essencial à vida, não pode ser abandonado a uma lógica mercantil e muito menos concessionada a privados. Mas também rejeita por considerar não estarem minimamente garantidas as vantagens que sustentam este projecto designadamente em termos de eficiência e qualidade do serviços e muito menos quanto à sua universalidade que nunca é referida.

O acesso aos fundos estruturais representa igualmente um falso argumento tendo em conta que o acesso a estes fundos apenas está condicionado pelas opções do governo que, relativamente a esta matéria tem exercido uma chantagem indigna com muitas Câmaras Municipais que têm procurado apresentar projectos alternativos. Aceitar esta chantagem, que garante, se as previsões forem correctas, cerca de 17,5 milhões de euros para a conclusão da nossa rede de saneamento e 700 mil euros para a rede de águas, representa um preço muito alto para as populações. Até porque este investimento global de cerca de 18 milhões de euros entre 2010 e 2019, representa apenas um esforço anual de 1,8 milhões de euros. O SMAS, só à sua conta, investiu em 2007 e 2008 mais de 1.5 milhões de euros pelo que aquela quantia deve ser relativizada.

Ao entrar neste projecto, as populações perdem porque vão pagar tarifas elevadíssimas como acontece em todos os locais onde as câmaras abdicaram desta sua competência, mas perdem sobretudo porque ficam com um direito fundamental fortemente ameaçado: o direito à água sem a qual nenhum ser humano sobrevive por mais de alguns dias.

Disse.